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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

III – PERDIDOS NA SELVA (Parte 1)

POR MARES DANTES NAVEGADOS
6ª EDIÇÃO – MOÇAMBIQUE

III – PERDIDOS NA SELVA

Parte 1

Levantámo-nos junto com as primeiras aves da manhã. Ou talvez ao som delas, ali nas frondosas árvores do terreiro em Laulane. Uma Eucaristia bem matinal, na capela, ao som de órgão (um Yamaha DGX) e não de tambores nem guitarra, que tem sido o habitual. Juntou-se a nós, para concelebrar, o Pe. Couto, fundador da Universidade Católica de Moçambique. Seguiu-se o pequeno almoço, como habitualmente orientado pelo Pe. Tavares que, juntamente com o responsável da instalação, o Pe. Cassiano (agora ausente pelo falecimento do seu pai), padres da Consolata, não só praticaram sumamente a obra de misericórdia de dar comer a quem tem fome, como quase nos faziam cair no seu oposto, o pecado da gula, e tão bem nos acolheram. Foi a nossa primeira mini noite em Maputo.

Porque logo a seguir, com a bagagem “minor” a que já nos habituámos, rumámos à fronteira de Ressano Garcia, a mais movimentada do país, para entrar na África do Sul (desta vez como viajantes legais).

O percurso dos cerca de 100 Km que separam a capital de Moçambique e esta fronteira, é feita sobre um excelente asfalto e a paisagem que vislumbramos é muito boa. Zona plana, mais ou menos a acompanhar a bacia de vários rios que vêm confluir nos arredores de Maputo. As zonas periféricas da cidade onde se concentra maior industrialização, tem um aspecto bem ocidental. Medeiam alguns subúrbios muito pobres que nos voltam a remeter à África mais desvalida e, depois, muitos Kms de terreno bravio. Voltamos a contactar a sério com África típica, ao chegarmos a Ressano Garcia, a vila fronteiriça, onde visivelmente se patenteia a pobreza, o drama dos refugiados e onde tudo se compra e se vende no ladear da via principal.

Ainda na rua, do lado de Moçambique, fomos submetidos a inquéritos (pelo menos 2), relacionados com turismo e com economia, e passámos sem qualquer dificuldade as formalidades aduaneiras. Fiquei surpreendido com a fluidez do processo, a simpatia dos funcionários aduaneiros e o facto de não se evidenciar nenhum complô para cobranças “por debaixo da mesa” que são dominantes na maior parte dos serviços em África. Aqui não. E passámos às formalidades do lado da República da África do Sul. Tudo muito simples e facilitado, sem vistos de entrada nem taxas aduaneiras… entrámos, finalmente, no país mais ao sul da África, apenas a uns centímetros de mapa a leste do Cabo Bojador, também o das Tormentas dos nossos antepassados.

Não existe nenhuma povoação na fronteira do lado de lá. Mas a paisagem denunciou, de imediato, pelas melhores razões, que estávamos noutro país. À vista desarmada, o desenvolvimento é outro; as estradas, o aproveitamento dos terrenos e outros recursos, a construção, etc. aproximam-nos do que conhecemos na parte de cá do mundo.

O nosso destino era o Kruger Park, considerada a maior reserva selvagem do mundo. Percorremos os 175 Km da fronteira até à entrada da reserva selvagem, não sem antes termos umas 2 ou 3 paragens de controle policial. Isso não mudou. Uma delas foi mais escrutinada, mas sem consequências. Ressaltou-me delas uma pequena curiosidade que já tinha observado em outros locais dentro de Moçambique e que já antes conhecia de Angola; pressupostamente, aqui deveria falar-se Inglês ou, pela proximidade da fronteira, eventualmente ainda o Português. Mas os nossos motoristas falaram com os polícias, sem gaguejar, num qualquer idioma autóctone, bem compreendido por ambas as partes (menos por nós). Isto leva-nos à eterna reflexão sobre o quão fictícias são as linhas de fronteira, traçadas a “régua e esquadro” outrora pelos europeus e que, ao fim de 500 anos não conseguiram subjugar as culturas, essas sim, intrincadas na pele e nos genes das pessoas.

Passámos por diversas urbes rurais, e as casas já são de tipo europeu. Sobretudo a “Chaparia” que se instalou na maior parte da África a substituir desgraçadamente a tradicional (e para nós fantasiosa) estética rural, aqui está substituída por construção sólida e com cobertura adequada à arquitectura.

E chegámos finalmente a uma entrada do Kruger Park, onde se abrem quase 20.000 Km quadrados de vida selvagem, e onde os protegidos temos de ser nós. Demorámos mais tempo na admissão para chegarmos ao nosso “lodge”, MJEJANE do que a passar as 2 fronteiras entre os países. Não há asfalto no parque. Tudo feito em picadas, em bom estado, e com um limite de velocidade de 30 Km/h. Não é brincadeira, nos quase 20 Km para chegarmos a Mjejane, a cada canto estava escondida uma câmara de velocidade e, se ultrapassada, as respectivas coimas estariam prontinhas a liquidar, obrigatoriamente, na saída do parque. Divertimo-nos até a encontrar as ditas câmaras. Respeitadores, os nossos 2 motoristas, saíram incólumes. E já próximo do Lodge, uma cerca eléctrica de protecção ao mesmo, não fossemos abrir a janela de manhã e levássemos com o ímpeto de um leão, ou o cumprimento amistoso do pescoço de uma girafa. Tudo devidamente controlado: à nossa aproximação, viaturas já identificadas, lá se abriu a cancela e entramos em reino protegido. E entende-se muito bem porquê o limite de velocidade: junto à picada, fomos encontrando inúmeros animais que atravessam a estrada a cada momento, sobretudo búfalos, muitas gazelas, zebras e outros bichos que não identificamos assim de repente, ou aos quais trocámos discursivamente os genes, famílias ou espécies.

No Mjejane River Lodge fomos bem acolhidos. Chegámos na hora de almoço pelo que, de imediato, fomos orientados para as traseiras onde num amplo espaço de esplanada estava colocada a nossa comprida mesa de 19. Além dos 18 navegantes, tivemos o privilégio de ter a companhia do bem disposto Pe. Francisco Lourenço, Salesiano, a cujos cuidados também estivemos entregues em Maputo, sobretudo para nos transportar e mostrar maravilhas que por ali se fazem. Aqui era nosso convidado.

Logo abaixo, no meio de um relvado, uma piscina naturalmente aquecida pelo intenso sol africano, apenas experimentada por dois corajosos e tímidos padres de quem não revelo o nome, que foram tomar banho cerca da meia noite. Talvez tenham pensado que a essa hora, a vara de javalis que também frequentava a piscina, estivessem a esmoer a barrigada de relva que tinham capinado durante a tarde. De facto, quando chegámos, uma série de animais dessa estirpe, andavam calmamente a cortar a relva na zona da piscina, numa pose que nem imaginava – de joelhos com as patas da frente. Não sabia que era esse o hábito dos animais. Também… nunca tinha estado tão perto deles como aqui; a uns escassos 2 metros. Foram modelos de passerelle e encurtar essa distância correspondia a uma rosnadela ameaçadora e um imediato salto reflexo à retaguarda, por parte dos fotógrafos. E ali mais ao fundo passava o Crocodile River, onde os animais que lhe dão o nome, bem como os hipopótamos e outros animais de grande porte abundam. Claro que, entre o dito e o Lodge, interpõe-se a rede electrificada que nos guarda. (Continua)

Luis Matias (ASDL)







     

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