POR MARES DANTES NAVEGADOS
6ª EDIÇÃO – MOÇAMBIQUE
“EU SÓ PODERIA CRER NUM DEUS QUE SOUBESSE DANÇAR”.
Assim escreveu Friedrich Nietzsche no famoso livro “Assim falava Zaratustra”.
Se Nietzsche tivesse vindo connosco a África, e não fosse apenas fazer um safari, seria compulsado a ter de acreditar, por força das suas próprias palavras, e não seria mais o maior símbolo do ateísmo do final do século XIX, projectando-se por todo o século XX e até aos dias de hoje.
De facto, em África, Deus sabe dançar!
Deus dança, numa alegria interminável, genuína e pura, na oração, na entrega e na vivência da Fé daqueles povos.
Este ano, entre 3 e 20 de Setembro, concretizámos, finalmente, o plano, já sonho, que desde 2019 fomos adiando (por força da pandemia Covid 19), no âmbito do programa/actividade da UASP, “Por mares dantes navegados”, que nos levou, numa perspectiva de aprendizagem e partilha com as gentes que habitam os lugares por onde os Portugueses, “por mares nunca dantes navegados”, andaram a espalhar a Fé e o Império, e a miscigenar como ninguém, a cultura e as raças. Desta vez (depois de Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Madeira e Porto Santo, Angola, Terra Santa e Egipto), chegámos a Moçambique.
Há quatro anos que preparamos, e envolvemos, muitos mais do que aqueles que puderam ter a sorte de viajar connosco. Tínhamos levado a cabo muitas actividades, para angariar alguma partilha para levar às comunidades que visitámos e com quem interagimos de uma forma maravilhosa e fraterna. Sempre temos um objectivo definido para cada uma das viagens e, nesta, muito para além da componente turística que, obviamente, também consideramos, queríamos ver e aprender, como verdadeiramente funciona a organização das comunidades que se estruturam como a verdadeira igreja ministerial. As dificuldades que a Igreja atravessou e atravessa, decorrentes de aspectos como: a falta de liberdade religiosa, e mesmo a perseguição durante os anos pós-independência; as dificuldades territoriais; os constrangimentos de circulação; a falta de padres e religiosos consagrados; a barreira das línguas autóctones; a concorrência de outras confissões e, modernamente, a proliferação de seitas, trouxeram à Igreja de Moçambique, novas necessidades, a que os fiéis responderam de uma forma heroica, estoica, criativa e acabaram por aproximar muito mais a Igreja de hoje à Igreja nas suas origens. Ela é mais operativa e ministerial, do que clerical e hierárquica. Talvez respondam muito mais às propostas do Concílio do Vaticano II, do que as igrejas mais estabilizadas e, também, em alguns casos “enquistadas” do Ocidente.
A crescente falta de vocações no Ocidente, o crescente alheamento das questões da Fé nas nossas sociedades, promovido pela grande confusão na compreensão do conceito de “laicismo”, o domínio do dinheiro e da supremacia da economia de consumo que criaram uma sociedade hedonista e moralmente desleixada, levou, não só à diminuição drástica dos crentes que praticam e manifestam a religião e a adesão à sua Igreja, mas, mesmo aos praticantes, motivou um crescente desligamento progressivo do serviço.
Esta situação está a colocar, rapidamente, um desgaste na prática religiosa e nas estruturas de base da Igreja, e põe em grande risco a capacidade de, a breve trecho, as dioceses e as respectivas paróquias, conseguirem assegurar os actos de culto e a dinamização da vida religiosa dos fiéis que, afinal, desde as primeiras comunidades cristãs, deve ser mesmo apanágio de todo o Povo de Deus.
Ora, como muitas vezes repetia o nosso companheiro Padre Armindo Janeiro, “Moçambique está dois passos à nossa frente”. E é óbvio que, “dois passos”, é metafórico; estão mesmo muito à frente. Foi este cenário e esta experiência que nos propusemos ir ver, com os nossos olhos e o nosso sentir. Ver no local, falar com os protagonistas, viver e experienciar as circunstâncias, as condições, o viver e o sentir deste povo e destes responsáveis, bem como da estrutura hierárquica da Igreja de Moçambique.
Para isso, galgámos muitos quilómetros, sempre dormimos pouco (para não estragar este tempo tão rico). Abanámos muito o esqueleto durante 18 dias, envolvemo-nos em verdadeiras aventuras, algumas inusitadas e imprevisíveis, conhecemos comunidades e gentes maravilhosas, ouvimos ritmos e cantos, inundados de alegria, por todo o lado, que nos deixavam muito pequeninos, e projectaram para o completo esquecimento a nossa altivez europeia e a nossa “às vezes mania de que sabemos tudo”. Aqui, estamos noutra dimensão da vida, sentimo-nos alunos, aprendizes iniciáticos.
Quantos nestes locais andam descalços, ou quase, mas dão-nos lições de grandeza, de humildade e de gratidão, de muita alegria genuína, de serviço, de fé?
E não falamos só do povo, falamos de bispos e padres, religiosos e religiosas consagrados, muitos de outras partes do mundo. Que lições aprendemos…
A nossa viagem foi desenhada para contactarmos com 4 regiões diferentes e distantes:
. Tete (Centro interior de Moçambique)
. Kruguer Park (África do Sul)
. Inhambane (No litoral)
. Maputo
Só aquilo que se nos imprime na alma, possibilita fazer o que vou fazer agora: descrever, resumindo, a viagem, sem recorrer a nenhuma cábula nem consulta. Dizer “de cor” o que me lembro e como me lembro.
A viagem…
A ansiedade desta viagem já fazia parte do nosso imaginário há uns 5 anos, mas com maior incidência há 3 anos; finalmente chegou. O objectivo (já atrás descrito) não se alterou nunca, mas os pormenores foram, por diferentes circunstâncias, sofrendo mudanças. Tenho de reconhecer que, por sorte ou saber, fixámo-nos para concretização, seguramente, na melhor de todas as opções que estiveram em jogo durante todo este tempo. Assumo que, para este sentimento, pode simplesmente concorrer o facto de concretizar uma opção que me proporcionou plena realização, até porque não realizámos (parcialmente) algumas das outras. Mas sinto que não poderiam ter sido melhores.
E assim, finalmente, lá nos concentrámos em Fátima, no estacionamento da Consolata, debaixo de um céu semi-diluviano em pleno verão, de onde um transfere conduziu os 18 navegantes e a assistente de viagem ao aeroporto de Lisboa. Chegámos ao fim do dia e vencemos todas as formalidades sem qualquer nota adicional. Logo ali, para embarcar no mesmo avião, Mia Couto foi reconhecido e postou-se para umas fotos, e a promessa de um jantar em Maputo no nosso último dia, que depois, veio a não se poder concretizar. E ao cair da noite iniciámos a aventura de romper o céu na travessia de um continente inteiro, apenas 12 km acima das suas areias, florestas e mar. Por insegurança da rota habitual, pelo centro de África, tivemos de seguir numa rota alternativa (África ocidental, Golfo da Guiné e Angola), que acrescentou mais uma hora e meia à viagem, totalizando doze horas e meia, ao fim das quais, de madrugada, chegámos a Maputo.
Ali, fomos de imediato acolhidos pelo “baque quente de África”, e o seu cheiro típico, e também por uma multidão de “bagageiros”, colados como lapas a fazerem-se à “gorja”, entre navegantes que ainda nem sabiam a cor dos “meticais”, a moeda de Moçambique. E por via das dúvidas, aceitam euros de gorjeta, mesmo que nem ponham as mãos nas malas. São difíceis de descolar, mas África é toda assim!
E como é bom sermos esperados; sensação absoluta de segurança. Lá estava o Padre Francisco, salesiano, com a sua impecável pick-up Toyota, e um miniautocarro do Instituto superior S. João Bosco que seria o nosso super taxi na sua bem conhecida cidade de Maputo e arredores. Carregadas as malas, rumámos ali perto, nos subúrbios, ao nosso quartel general, instalações dos Missionários da Consolata, onde já fora um Seminário e hoje funciona uma Casa de Retiros, em Laulane. Foi a nossa habitação sempre que estivemos em Maputo, e guardou os nossos pertences sempre que os dividimos em malas mais pequenas para as nossas diversas incursões para outras paragens.
Luís Matias (ASDL)
Olá, saudações franciscanas de Paz e Bem
Como foi bom, cerca de um mês depois do início da viagem real, após a leitura desta crónica, regressar ao sonho adiado pela pandemia que parou o mundo. Mas, como diz o poeta é “…pelo sonho que vamos e chegámos…”. Assim foi! Chegámos a Moçambique como muito bem nos conta o Luís Matias……Os que ficaram, certamente que também vão sonhar e chegar…….
Abraço amigo e fraterno
Alfredo