CENTELHAS DO XXIX ENCONTRO DA FAMÍLIA CARMELITA DA REGIÃO IBÉRICA
Oriundos de todos os recantos da Península Ibérica, mas também de outras paragens mais além, cerca de cento e cinquenta cidadãos que assumiram perante si próprios, perante o mundo e, sobretudo, perante Deus e Maria, sua mãe, viver em pleno o carisma carmelita, foram chegando ao hotel Casa S. Nuno, em Fátima, para aí conviverem e saírem aperfeiçoados para um mais capaz enfrentamento dos desafios, que são muitos, que o mundo e a sua própria condição lhes colocam.
Contrastando com o ambiente exterior que se apresentava algo brusco, diria que em contraciclo com o calendário, chovia e vagueavam por aquelas paragens massas de ar mais habituais em dias de inverno ou de primavera envergonhada, o semblante dos participantes era alegre e, diria, até jovial, não obstante o vincado na pele de alguns, reconfortados pelo reencontro ou pelo simples facto de estarem unidos espiritualmente em propósitos comuns.
O Frei Agostinho Castro, o Padre Comissário-Geral da Ordem do Carmo em Portugal, jovial como sempre, depois de um jantar que abriu os atos conjuntos previstos, deu as boas-vindas no salão do Hotel, uma espécie de salão nobre, porque é acolhedor, embora isento de elementos decorativos ostentatórios, mas muito funcional. Foi um momento precedido e consumado em oração durante o qual foram transmitidas algumas instruções tendentes a um bom funcionamento dos trabalhos.
O dia 29 de junho, tal como os dias seguintes, à parte do pequeno-almoço, essencial para a concentração necessária nos trabalhos, e da récita das Laudes em vista da santificação do dia de cada um, começou com uma conferência orientada pelo Padre Frei Pedro Bravo, um especialista em espiritualidade carmelita, apresentado à audiência pela Drª Fátima Felgueiras, da organização, que discorreu sobre os conteúdos da Regra da Ordem Terceira do Carmelo, que classificou como um “Caminho de Santidade”, em consonância com o tema do Encontro que teve como escopo algumas Figuras de Santidade do Carmelo e o lema “Este Caminho é bom e santo: segui-o”. Um caminho que é apontado pelo n.º 20 da Regra da Ordem do Carmo que o Patriarca de Jerusalém, Santo Alberto, escreveu para os carmelitas no início do século XIII.
Na sua conferência, o Frei Pedro, muito fluente e pausadamente, abordou a regra dos carmelitas terceiros, os leigos carmelitas, que o seu Prior Geral, Frei Joseph Chambers, promulgou no dia de Nossa Senhora do Carmo, em 2003, que está dividida em duas partes. A primeira versa sobre Espiritualidade e Carisma e a segunda define os Estatutos Gerais.
No entender do Frei Pedro, a Regra é o caminho para o florescimento no seio do Carmelo, uma via privilegiada e segura para o caminho da santidade, que é o caminho apontado pelo Carisma Carmelita, um caminho que há de ser encontrado através da condição de vida de cada um. Essa santidade consiste em viver o batismo até às últimas consequências, encontrando-se a perfeição na caridade. Contudo, ninguém conseguirá ser santo num só dia, é um caminho que se aperfeiçoa dia a dia. O Terceiro vincula-se ao Carmelo mediante a profissão, através da qual se consagra mais profundamente a Deus e intensifica as promessas do batismo de modo a conformar-se plenamente com Cristo. Os terceiros carmelitas são membros plenos do Carmelo, contribuindo através da sua santidade e do seu serviço específico, para o enriquecimento de toda a Família Carmelita. Viver o Carisma Carmelita tem várias vertentes, que se caraterizam pela dimensão contemplativa, que se nutre de uma vida imbuída pela oração, que se exprime na fraternidade e se traduz no serviço à Igreja e ao mundo. A sua relação com Cristo deverá ser pessoal, calorosa, afetuosa e constante. O Carmelita secular deve passar pela experiência do deserto que o leve a despegar-se de tudo e a unir-se a Cristo, empenhando-se em servir na justiça e na caridade, no ambiente familiar, na vertente do trabalho e na vida profissional, nas responsabilidades sociais e eclesiais, em suma na vivência diária com o próximo.
Seguiu-se um tempo de intervalo e reflexão que foi interrompido pelo início da segunda conferência da responsabilidade de D. Manuel Clemente, Patriarca Emérito de Lisboa, que na sua qualidade de membro qualificado da Igreja Universal, mas também de historiador, dissertou sobre a vida de Nuno Álvares Pereira, o Condestável de Portugal, hoje S. Nuno de Santa Maria. Foi o Frei Ricardo Rainho, o anfitrião competente e sempre solícito, que introduziu o conferencista que começou por falar das origens de Nuno e da sua fidelidade à terra que o criou, que jurou sempre defender em nome da justiça e de Deus.
Era seu objetivo tornar-se um digno cavaleiro, como Galaaz, cuja perfeição de vida o levou a alcançar o Santo Graal, escondido em terras de Espanha, o único que o havia conseguido até então e isso impressionou Nuno, marcando a sua vida que sempre orientou para a moral que praticava e impunha aos seus soldados, sob pena de pesados castigos. A sua fama de guerreiro eficaz tornou-o célebre também entre os seus contemporâneos, referindo um episódio em que alguns escudeiros espanhóis, fascinados pelo seu modo de vida, foram ao seu acampamento em Cáceres “apenas” para o ver e perceber quem era aquela figura que ganhava batalhas pelo simples facto de ser ele a comandar as tropas, o que, só por si, desencorajava os inimigos.
Envolveu-se na prática do Carisma Carmelita junto de frades, designadamente dos carmelitas de Moura. Praticava a caridade em toda a sua extensão, referindo o exemplo de que, em período de grande carestia, alimentou centenas de castelhanos durante seis meses. Sendo uma das maiores figuras da história portuguesa há muita gente que ainda hoje não compreende bem o gesto de abandonar toda a sua riqueza e refugiar-se num convento carmelita que ele próprio havia construído, apenas para servir os mais pobres e viver piedosamente, pedindo e distribuindo esmolas pelas ruas de Lisboa. Ficou famoso o caldeirão usado para confecionar as refeições das suas tropas e que levou para o Convento do Carmo para confecionar e servir refeições aos mais pobres.
Não admira, pois que o Povo o apelidasse de Condestável Santo, sendo-o também para a generalidade da nobreza, incluindo o próprio rei D. João e o príncipe herdeiro D. Duarte, que ficavam muito indignados por saberem que Nuno pedia pelas ruas de Lisboa, solicitando-lhe que pedisse a eles e não pelas ruas!
Morreu no mesmo ano em que morreu Joana D’Arc, dois santos da Igreja Católica o que prova que no processo militar pode haver santidade. Há quem faça grande distinção entre o Nuno militar e o Nuno santo, mas é distinção que não colhe, pois em toda a sua vida seguiu a mesma linha, servir a Deus, a Pátria, os pobres e a justiça, com Maria, Virgem Santíssima.
No final da sua intervenção, em período de perguntas e respostas, acabou por ser levantada a questão do Cisma do Ocidente, que atravessou todo o reinado de D. Fernando e parte do reinado de D. João I e, concomitantemente, todo o período da carreira militar de Nuno, sendo que, ao tempo, a coroa portuguesa obedecia a Roma e Castela seguia Avinhão o que também justifica a conflitualidade de então entre Portugal e Castela.
Seguiu-se um almoço farto e de qualidade, após o qual todos foram convocados para mais uma conferência, cujo tema e conferencista foram apresentados pelo Frei Pedro Bravo, que referiu o vastíssimo curriculum da palestrante, a irmã Ângela de Fátima Coelho, superiora Geral da Congregação Aliança de Santa Maria, donde sobressai, além da sua vertente religiosa, uma componente social muito importante, pois é médica no Hospital de Leiria.
Na sua qualidade de vice-postuladora da Causa de Canonização da Irmã Lúcia, a quem foi dirigida uma oração coletiva, acabou por referir que para essa causa vingar é necessário documentar o processo com as evidências de um milagre que possa ser atribuído a Lúcia, o que ainda não aconteceu, sendo necessário rezar para que aconteça.
Ao longo da sua intervenção foi assinalando cada um dos pontos fulcrais da vida de Lúcia, organizados cronologicamente, começando por afirmar que Lúcia é uma luz para a igreja que resulta da sua vida. Tem a sua primeira conexão com o Carmelo em 30 de outubro de 1917. Depois das atribulações sofridas após as aparições e a relutância das autoridades religiosas e civis em aceitar o seu testemunho, Lúcia conclui pela necessidade de aprender a ler, decidindo ir para o Porto, mas não foi acabando por entrar nas Doroteias em Espanha, onde a formação recebida foi essencial para alcançar a espiritualidade carmelita. Foi ela que pediu ao bispo para ingressar no convento e não o contrário.
Toda a sua vida foi de obediência e não queria que de si ficasse memória. Os mistérios da Trindade e da Eucaristia fascinavam-na. Antes de entrar para o convento em Coimbra, pediu que a deixassem levar um rosário, mas foi autorizada a levar apenas um crucifixo e não o terço, crucifixo esse que a acompanhou a vida toda e morreu agarrada a ele. Via Maria como mãe, como professora… tornou-se tão pequena que cabia no coração de Maria, era como se entre Lúcia e Maria não houvesse diferença. Esta mulher não pode ser entendida sem ser à luz da Eucaristia. Dizia quando entrou no convento em Coimbra que “sinto que sou teu sacrário vivo” e, mais tarde, em 1985: “Sou sacrário vivo, não importa de quê…”. “É minha vocação ser luz de Jesus e de Maria”.
A noite escura de Lúcia foi a noite escura de Paulo VI nos anos sessenta e setenta do século passado, a seguir ao Concílio. Recebeu mais de setenta mil cartas enquanto esteve no convento oriundas de todo o mundo e de toda a espécie de gente.
Concluiu dizendo que a mensagem de Fátima não é apenas para mim e que o maior equívoco do mundo como dizia Ratzinger, “é pensar que a situação económica pode mudar o mundo”! Mas não é a economia que o pode mudar, são as forças renovadoras do espírito. É com o poder da oração e com o Espírito Santo que podemos mudar o mundo.
Como habitualmente em todo o encontro, a cada ato coletivo organizado seguia-se um intervalo de trinta minutos preparatório do ato seguinte que, aqui chegados, consistia num trabalho de grupo previamente preparado com o sorteio dos membros que haveriam de incorporar determinado grupo. Foram constituídos sete grupos para refletir sobre a vida de Tito Brandsma, de Pablo Maria Hidalgo, de Isidoro Bakanja, de Zélie e Louis Martín, de Nuno de Santa Maria, de Stª Teresinha do Menino Jesus e da Irmã Lúcia de Jesus em vista da construção de uma meditação coletiva que haveria de ser lida no decurso da Via Crúcis do dia seguinte, dando assim visibilidade ao trabalho de cada grupo, partilhando as suas reflexões.
Chegou então a hora das Vésperas, seguido de um jantar e tempo livre que a maioria aproveitou para rezar o terço na Capelinha das Aparições e integrar a Procissão das Velas, que ocorreu simultaneamente a um desfile de chuva miudinha, terminando assim o segundo dia do encontro.
O terceiro foi um dia com um horário de trabalhos menos apertado, cumprindo-se assim o Dia do Senhor, rezando as Laudes após o pequeno-almoço e participando na Eucaristia que haveria de ser concelebrada por cerca de duas dezenas de sacerdotes, vários dos quais carmelitas, no recinto do Santuário, sob intermitentes períodos de chuva, daquela que cai e se entranha, tal como as palavras fluíam calmas e piedosas da instalação sonora. Pausadas, claras e invitatórias de comunhão.
Depois do almoço, pelas 15,30 h, a generalidade dos participantes no encontro, não todos porque o percurso é longo e exige alguma disponibilidade física que nem todos desfrutam, concentrou-se nas imediações da I estação da Via Sacra, para dar início a esta reflexão sobre a paixão e morte do Senhor.
Antes do início do percurso e da reflexão que se iria fazer junto da I estação, o Padre Frei Agostinho, que presidiu à cerimónia, revelou aos presentes, na sua grande maioria carmelitas espanhóis, que estávamos ali perante uma escultura de Maria Amélia Carvalheira da Silva, uma terceira carmelita, após o que começou o exercício da Via Sacra por um bucólico caminho gizado por muretes de pedra, ladeado de pinheiros e oliveiras, entre outras espécies. As oliveiras tão ligadas à Via Crúcis! Foi no Monte das Oliveiras, no jardim do Getsémani que, verdadeiramente, começou a Paixão de Jesus, pois foi aí que foi traído e preso. Era notório o recolhimento dos exercitantes sabiamente encaminhados por quem construiu aqueles muros delimitadores do caminho, que não do pensamento ou etnias, que os haveria de conduzir ao Calvário dos Húngaros, plenos de confiança no destino, mas cientes das dificuldades do itinerário de cada um, do calvário de cada um, que ali pode encontrar a forma de o tornar mais leve.
Para a noite desse último dia de junho de 2024 estava reservada uma sessão recreativa que haveria de ser preenchida, durante cerca de dez minutos, por cada uma das Comunidades Carmelitas da Região Ibérica presentes em associação. Foi o Comissariado do Carmo em Portugal que abriu a sessão dando a conhecer aos presentes o que é, mas também como foi e como começou a Ordem do Carmo em Portugal, através da apresentação de um vídeo adrede elaborado para a Jornada Mundial da Juventude. A seguir estiveram no palco as Hermanas de La Virgen Maria del Monte Carmelo, de Madrid, a Provincia de Aragón, Castilla y Valencia, as Hermanas Carmelitas del Sagrado Corazón de Jesus, a Província Bética e a Província da Catalunha, que presentearam os circunstantes com cânticos e coreografias da sua região. Nalguns casos foram apresentadas canções ligadas à origem dos membros de cada congregação, não sendo limitada assim ao local da sede da fundação. Foi uma noite muito bonita, alegre e afetuosa.
Para o último dia, que começou, como os anteriores, pela recitação das Laudes consagrando assim a Deus o dia de cada um, estava reservado um tempo para olhar para a Jornada Mundial da Juventude, realizada em Portugal em agosto de 2023, e refletir sobre os Desafios de Santidade lançados pelo Papa Francisco aos jovens, sob a orientação de Mariana Frazão que foi a responsável pela Direção Pastoral e dos Eventos Centrais da JMJ23 e de Carmo Diniz, que foi Diretora do Gabinete de Diálogo e Proximidade no Comité de Organização Local da JMJ Lisboa 2023. Este gabinete teve como umas das missões criar condições para a acessibilidade e participação das pessoas com algum condicionamento físico, objetivo que, reconhecidamente, foi atingido com sucesso. Foram apresentadas por um antigo aluno do Seminário Carmelita de Portugal.
Foi a Carmo Diniz que fez a introdução e afirmou que em toda a JMJ23 foi a pastoral que esteve sempre em primeiro lugar. A Mariana começou por dizer que acabaram de percorrer uma distância similar à que Maria percorreu para visitar a sua prima Isabel, uma feliz coincidência e continuou dizendo que o papa não trouxe nada de novo, a mensagem já tinha sido antecipada. Seguiu-se uma alternância de partilha de experiências e interpretação do que foi a JMJ. A Santidade atinge-se pela oração, pela mansidão, pela ousadia, pela alegria e em comunidade, não se podendo ficar preso nas dificuldades do dia a dia.
A JMJ teve factos invisíveis e visíveis. Foram invisíveis para o público em geral e, nalguns casos, até para a imprensa, como o encontro com as principais figuras do Estado e pessoas individuais, como a D. Conceição, de 106 anos, nascida no dia da primeira aparição em Fátima. Aliás, o Papa queria encontrar-se com todos e queria estar sentado com jovens ao lado.
Quanto aos factos visíveis, apelidados de Eventos Centrais, estão ainda na memória de muitos, sobretudo dos que participaram em tão magno evento.
Prosseguiram elencando alguns dos desafios de santidade emergentes da JMJ: – O Acolhimento: – Foi um evento central ocorrido no Parque Eduardo VII, em Lisboa, que teve um odor de santidade. Não se tratou apenas de logística, foi também a predisposição de cada um para acolher. A Igreja é para todos, todos, todos! Todos pescadores de homens. Este acolhimento teve, de facto, um odor de santidade; – A Certeza do Amor de Deus: – É outro dos desafios da santidade. Eu sei que sou amado e sei que tu és amado. Com a Via Sacra realizada no Parque Eduardo VII, pretendeu-se demonstrar, nas catorze estações, aquilo que impacta a ansiedade, a solidão e todas as preocupações dos jovens. Lembraram que, não obstante ter estado tanta gente junta, não houve um único incidente merecedor de intervenção policial; – A Igreja É Para Todos, Todos, Todos: – Estou cá para todos! Não vamos levantar alfândegas. Lembrem-se que a Capelinha das Aparições não tem portas para todos poderem entrar; – Vamos Fazer Caminho: – O caminho é fazer o que cada um tem de fazer no dia a dia que é fazer o bem; – O Sonho da Paz: – É preciso concretizar o sonho da paz. A Europa que, parecia, havia conquistado a paz, está de novo em guerra. Conquistemos a paz no dia a dia; – Não Ter Medo: – Não tenham medo de lutar pela Paz e não tenham medo perante as dificuldades.
Todos estes desafios serão vencidos se nos empenharmos com alegria, com confiança, com coragem, com persistência e com amor.
Na eucaristia do último dia do Encontro, dia 1 de julho, o Padre Comissário-Geral da Ordem do Carmo em Portugal agradeceu a todos. Aos presentes, à organização e ao Santuário e pediu aos presentes que, no imediato, consigam traduzir a fé em cada momento da sua vida e recordou a nona Bem-Aventurança que o Mestre elencou perante os seus apóstolos: – “Felizes sois quando vos insultarem, vos perseguirem e mentindo disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa é grande nos céus, pois do mesmo modo perseguiram os profetas antes de vós». E acrescentou uma “décima bem-aventurança”: “Bem-aventurada a Família Carmelita porque o caminho que segue é bom e santo”.
Ainda houve tempo para um apressado almoço por parte de alguns com residências mais distantes. Outros ainda permaneceram mais um pouco, na firme convicção da retoma do mesmo espírito para o próximo encontro que se realizará de 27 a 30 de junho de 2025, na Catalunha.
Américo Lino Vinhais
Antigo Aluno Carmelita