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Domingo, Novembro 24, 2024

II – TETE E UM GRANDE BISPO (Parte 1)

POR MARES DANTES NAVEGADOS
6ª EDIÇÃO – MOÇAMBIQUE

II – TETE E UM GRANDE BISPO

Parte 1

No dia da chegada, não experimentámos as nossas camas cativas em Laulane – Maputo. Depois de um bom almoço no restaurante Costa do Sol, ao fundo da marginal de Maputo, onde avistámos o oceano Índico pela primeira vez, e de uma “tournée” pelo centro da capital, onde nos detivemos para uma visita guiada e detalhada à catedral, voltámos ao nosso recém adoptado ninho para pegar em mala mais pequena, rumar ao aeroporto e tomar um avião para Tete, creditando mais duas horas e dez minutos de voo, tranquilo, para totalizar num só dia quase 16 horas em avião.

Chegados a Tete, cidade simpática, sede da província com o mesmo nome (e maior que Portugal continental), atravessada pelo rio Zambeze (o maior rio de África a desaguar no Índico e no qual está a maior barragem de África – Cahora Bassa), tínhamos à nossa espera o especial Bispo de Tete, D. Diamantino, e o Cardoso, o condutor do nosso “machimbombo”, que nos haveria de proporcionar algumas aventuras. E rumámos para o paço episcopal, que foi a nossa casa e a nossa base em Tete, embora alguns companheiros tenham ido dormir em casa gentilmente emprestada por duas congregações. A maior parte de nós, ficámos mesmo hospedados na casa episcopal.

Fomos tratados como príncipes. Uma peculiar figura recebeu-nos num frenesim de boa disposição e alarido. Fiquei na dúvida se seria um padre, mas muito fora do comum; primeiro tive mesmo a sensação de que seria o “bobo da corte” saído de algum romance medieval. Mas depressa percebemos que o Serafino era um voluntário italiano, braço direito do Bispo, com uma brutal história de vida que finalmente detalhou a nosso pedido na última noite em Tete. Se tivesse de o descrever para entenderem do que falo, bastaria colocar-lhe no nariz uma bola vermelha, e já poderia dizer que era o palhaço mais hilariante, mais sério, inteligente e dedicado do mundo; engenheiro, arquitecto, mestre de obras, animador… enfim, aplicado a um carro, seria um verdadeiro e possante 4×4. Ninguém podia estar triste com ele por perto. Seria o melhor professor da disciplina de “alegria no trabalho”. O que ele faz e comanda, é impagável.

E para além dos já citados e da paciente cozinheira no Paço, conhecemos ainda o ecónomo da Diocese que também já foi administrador apostólico na vacatura de Bispo, homem empreendedor e pároco de Chingodzi Norte onde fomos visitar a fantástica e enorme igreja de São Daniel Comboni que está a construir, o italiano, Pe. Sandro; o Vigário Geral da Diocese, Pe. Vital; e o jovem Pároco da Sé, Pe. Elton João que, tal como o outro, é também músico.

Na zona de Tete, vivemos 5 dias intensos, no meio de um furacão de emoções, de ritmo, de visitas a projectos, de oração, de partilha e de muita, muita alegria. No centro do furacão, o jovem Bispo D. Diamantino, dos Missionários da Consolata, que leva uma larga experiência de Moçambique e, de facto, um homem especial. Conduz ele mesmo a sua pick-up por todo o lado, carrega e descarrega carga, ajuda em todos os lugares, anda de moto, põe tudo a mexer à sua volta, sempre com uma dedicação e uma alegria incomuns. Empreendedor nato, recuperou ou está a recuperar das ruínas, diversas missões espalhadas pelo mato; animou e deu vida a lugares praticamente desaparecidos da glória de outros tempos, “ressuscitou” gentes e comunidades das vicissitudes da guerra civil e das perseguições partidárias dos anos 90, pactuou e criou sinergias com todos, de forma muito especial com congregações (muitas vindas do Brasil) cheias de vida e juventude, que dão alma a projectos fantásticos espalhados por todo o lado.

No primeiro dia fizemos uma viagem de reconhecimento à cidade de Tete. É atravessada pelo grandioso rio Zambeze que, para além de tornar muito férteis todos os locais por onde serpenteia, os enche de vida (incluindo crocodilos e hipopótamos), e foi a maior via de comunicação do centro de Moçambique, que permitiu a colonização, industrialização e missionação de toda esta vasta região do interior. Os povos que habitam estas paragens são de etnias ou tribos muito diversas, cada uma com seu idioma e seus costumes e, logo por aí, podemos inferir do quão heroicos e estoicos foram os primeiros missionários a chegar rio acima, e das dificuldades que tiveram na fundação de tão grandes obras destinadas apenas ao bem destas comunidades, e na sua manutenção ao longo destes cerca de 4 séculos.

Neste dia de reconhecimento, rumámos cedo a uma paróquia nos subúrbios onde, para se chegar, o asfalto falhou em favor de uma picada que, comparada com outras, poderíamos classificar, ainda assim, de excelente estrada. Mas chegámos a um local bastante contrastado com o entorno, onde mergulhámos no meio de mais de uma centena de crianças da escolinha “Mana Rosa”, todas de uniforme muito bonito e alegre (camisa laranja e calças marron), espelho de que veríamos em todas as escolas, dos infantários (escolinhas) até à universidade, e que uniformiza à vista com muita propriedade, os desníveis sociais que entre os alunos poderão existir. As crianças receberam-nos a cantar de boas vindas, cheias de alegria, afinação e candura. Os professores marcavam o ritmo. Responderam de forma sapiente a inúmeras perguntas que lhe fizeram, e até o Bispo quis examinar o conhecimento das crianças; não conseguiu registar nenhum falhanço. Cogitei com os meus botões: nestas idades, não conseguiríamos ter na Europa conhecimento escolar assim! Chutámos para o meio duas ou três bolas de futebol que levámos connosco e que de imediato dispersaram as crianças pelo terreiro, até à foto de conjunto, e visitámos as instalações, incluindo a igreja erguida em outro patamar mais elevado do terreno, com o altaneiro depósito da água e as casas de apoio da paróquia.

Depois visitámos o centro da cidade; a Catedral, igreja moderna, em anfiteatro, cheia de luz e cor; a Universidade Católica e a sua capela (que foi a primeira catedral de Tete), e partimos para a primeira missão, podemos dizer… no mato. Uns poucos Km em asfalto e, depois, mergulhámos numa picada, onde o paciente Cardoso, o motorista, tentava amenizar os movimentos das verdadeiras marionetas da carga que transportava, ainda assim com pouco sucesso, a julgar pelos permanentes “ais” da Laura que, no último banco, ia abusando dos movimentos do verdadeiro ginásio em que nos introduzimos.

Íamos passando por pequenas aldeias e encontrávamos gente na picada a transitar, abundando, contra as expectativas, os veículos de tração animal, com utilização maciça de burros. Registei a curiosidade, a propósito da sinalética, o Cardoso responder ao telefone, “vamos na árvore da polícia”. Efectivamente na picada, um posto da polícia no meio do nada, debaixo de uma gigantesca e frondosa árvore, onde os agentes nas duas vezes que ali passámos, fizeram questão de nos parar com cones no meio da rua, escrutinando com alguma persistência os transeuntes brancos daquela comitiva, tudo falado em dialeto local e, não fora a menção e ligação ao bispo e à missão católica, teríamos sido carimbados com a devida “taxa” de conforto para aumento dos proventos dos polícias que, diga-se de passagem, ganham uma bagatela.

Num singelo cruzamento da picada, uma pequena rotunda artesanal identificava muito bem a missão de S. José de Boroma. Entrámos nos vastos terrenos da missão, numa avenida de árvores e campos com o rio ali ao fundo, onde no caminho mais atrás, tínhamos avistado crocodilos, e fotografado um exemplar bem avantajado. E começámos a avistar, no cimo de um monte, um aglomerado que de imediato me sugeriu ser uma espécie de castelo, do qual se destacava uma torre e uma grande antena de comunicações. Ladeamos o monte a subir e entrámos dentro de um verdadeiro oásis. Das diversas construções, algumas ainda em ruínas ou meio reconstruídas, sobressai uma grande e bonita igreja, e uma majestosa casa principal, ainda com o andar de cima por reabilitar, mas que deixa entrever um também majestoso passado. À volta, uma enorme escola da qual iriamos ser testemunhas da inauguração de mais salas, oficinas e diversas instalações de apoio. Ao fundo, o sempre imponente Zambeze, aqui cheio de crocodilos e hipopótamos, e que permitiu, em outros tempos, a chegada aqui em Boroma dos Jesuítas, que construíram esta fabulosa missão e que mais tarde tiveram de abandonar. Agora, em reconstrução por mão do D. Diamantino, já cumpre a sua missão. Uma grande escola secundária, uma comunidade religiosa jovem “Sementes do Verbo” (Brasil), o início de uma comunidade de recuperação de adictas (feminina), “Fazenda da Esperança”, e muita esperança para recuperar o que falta e implementar novos projectos. Aqui dormimos uma noite. No novo dia, depois de uma exuberante celebração na lindíssima igreja, cujas pinturas estão a ser recuperadas pelas irmãs “sementes do Verbo”, presidida por D. Diamantino, com uma comunidade viva, cheia de alegria e ritmo, passou-se à cerimónia de inauguração de várias novas salas de aulas, um centro de informática e laboratórios. Estiveram presentes as autoridades e foi abrilhantada por uma grande festa, com danças dos alunos, de onde sobressai a canção de boas vindas com as cores do uniforme: “Apresenta ao povo // a nossa escola secundária // São José de Boroma. // Saia verde, camisa branca // divisa ao ombro // S. José de Boroma.

E voltámos já bem tarde, depois de jantar, para Tete, não sem o novo importuno policial no posto da árvore, e agora ainda mais difícil de transpor. O acolhedor Paço Episcopal garantiu-nos o resto de uma noite a “dormir depressa”, porque bem cedo, pusemo-nos prontos para nova e distante aventura. (Continua)

Luís Matias (ASDL)

 

 

2 thoughts on “II – TETE E UM GRANDE BISPO (Parte 1)

  1. Gostei, Luís. Senti-me conduzido (mesmo pela estrada balanceante… Ninguém chamou pelo Gregório?)
    Uma curiosidade minha: nacionalidade do bispo Diamantino?

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