Diz o poeta que “é pelo sonho que vamos e chegamos”. A sonhar e com a graça de Deus estamos em 2023! Aqui chegados, a sabedoria popular aconselha-nos a “viver um dia de cada vez”, para que a angústia do amanhã não estrague a alegria do dia de hoje. Com esta filosofia tão simples vamos ajudar a que o novo Ano seja Bom, de Paz e Bem.
E neste início de 2023 lembrei-me de abrir, ao acaso, o meu diário do ano de 1965! Estava na Guiné-Bissau num cenário de guerra. Nesse dia, próximo dos meus 24 anos, escrevi assim:
-“ Manhã de Janeiro e o sol já torra as coisas! Na Tabanca sentam-se as mulheres a catar os filhos de colo e os macacos, sempre brincalhões, dependuram-se nas árvores em movimentos acrobáticos. Comigo estranho, entro e saio no aquartelamento, dia e noite, pela porta de armas a quem os militares chamam “Cavalo de frisa”. Em redor, fiadas de arame farpado onde a espaços tilintam garrafas de vidro vazias para despertar as sentinelas em caso de aproximação de estranhos ou invasão. Para cá do arame, abrigos cavados e protegidos por duros troncos de palmeira e bidões cheios de terra. Aqui é a nossa casa. Um “lar” que abriga duas centenas de homens.
Quando chega a hora da saudade? Sabe-se lá……Quando menos se espera! As saudades nascem da alma e do coração podem viver, mais ou menos tempo, na memória da gente. Tudo depende do sentimento e das emoções causadas.
Por aqui o dia vem mais cedo e quase sempre acordamos estremunhados! Das camas saltam diligentes os madrugadores dirigindo-se aos balneários. Os “sornas” só depois abrem os mosquiteiros, espreguiçando-se em andamento vagaroso. O pequeno almoço está pronto. No refeitório o cabo do rancho, mais conhecido, no meio, por “rajadas” ´dá ordens e discute com os atrasados. No fundo até não é mau rapaz, tem aquele feitio e gagueja um pouco. Daí, a alcunha, fala ao ritmo dos disparos de uma espingarda automática (G3). De vassoura na mão os homens da limpeza estão prestes a terminar. A ordem de saída já chegou às secções, previamente escaladas. Vão “picar” a estrada de terra solta. Antes de arrancarem as viaturas é preciso detectar as minas colocadas pelos guerrilheiros. Os soldados nomeados para a água andam atarefados a distribuí-la nas casernas. A água potável é colhida noutra fonte, fora do aquartelamento.
A manhã vai quase no fim. O sol está a pino e os raios são coados pelas folhas dos poilões e das palmeiras. Os doentes foram à consulta. De volta já temos a escolta que foi a Bula, sede do Batalhão, que dista de Binar cerca de uma dúzia de quilómetros. Hoje trouxeram correio. É o melhor para, momentaneamente, quebrar a solidão. Os soldados parecem moleiros. O pó da estrada é medonho!
Após o almoço sobe a temperatura capaz de rebentar os termómetros! Cai-se, por vezes, num espaço morto. É a hora da saudade. Relêem-se as cartas das namoradas e das madrinhas de guerra. Alguns entram em êxtase! Após o jantar, o silêncio invade o aquartelamento. As sentinelas ocupam os seus postos. É preciso deitar cedo. Não sabemos se, a meio da noite, nos vêm importunar. O inimigo pode visitar-nos de morteiro e bazuca, ou sairmos para cumprir a missão preparada de véspera. E, então, lá vamos por entre a beleza da paisagem que nem vemos! Em qualquer atalho pode espreitar e corrigir a mira uma arma inimiga. Até o piar nocturno dos pássaros é exótico!
Outro dia nasceu. Nova alvorada de Esperança. Outra manhã. E são menos os que correm para os balneários. Muitos despertaram longe. Voltarão cobertos de suor e de lama. Mas, afinal, reparo que já estou na página seguinte do meu diário!…..
Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)
Alfredo Monteiro: belo texto. Também estive na Guiné em 71-73 como Polícia Aérea na base aérea, Bissalanca. Boa vida. Mas na Guiné a guerra estava sempre perto de todos. No meu quarto ouvia os rebentamentos pela meia noite lá longe.
Onde era o seu quartel ? Visitei uma vez um amigo num parecido.