O Papa Francisco tem sido fiel a esta premissa conciliar: a Igreja faz parte do mundo contemporâneo e com ele se faz caminho, num processo contínuo de conversão! Não aceita a miopia de continuar ocupada com um mundo que já não existe. Ainda muito recentemente, como nos lembrava o frei português Bento Domingues OP, o papa na Eslováquia, criticou duramente quem alimenta a ficção de procurar voltar atrás: «Sofremos isso hoje na Igreja: a ideologia do retrocesso. É uma ideologia que coloniza as mentes, é uma forma de colonização ideológica. Não se trata, no entanto, de um problema verdadeiramente universal. É específico das Igrejas de alguns países. Acrescentou com humor: há jovens que, depois de um mês de ordenação, vão pedir ao bispo autorização para celebrar em rito antigo. Este é um fenómeno retrógrado. Temos medo de avançar nas experiências pastorais».
Entendo eu, que a principal causa do desinteresse do mundo pela igreja, nomeadamente os jovens, a ciência, as universidades ou as classes mais abastadas, não está propriamente nos escândalos de que ela tem sido protagonista. Isso é terrível, mas não é a causa primeira! A verdadeira crise da Igreja Católica, que a deixa hoje fora do interesse dos homens e mulheres deste século, está numa constatação, tão triste quanto real: ela perdeu o embalo do Concílio Vaticano II que não foi apenas, uma resposta contundente ao mundo da época, mas abriu perspectivas para que a Igreja se comportasse de forma similar em todos os tempos. Consciente ou inconscientemente, nós nos perdemos ao longo destes mais de 50 anos. Houve além da estagnação, profundos retrocessos, que agradaram a pequenos grupos refratários, presos a visões teológicas e eclesiológicas do passado nitidamente estéreis e que prejudicaram essencialmente a ação do Espírito, que conduz esta Igreja. Se atentarmos, que o Vaticano II foi visto como o Pentecostes da era moderna, o início de século XXI ou quem sabe um pouco antes, nos mostra uma guinada, caraterizada por certa paralisia eclesial, perdendo o bonde desse aggiornamento conciliar. Não posso aceitar, que documentos como Gaudium et Spes, Lumen Gentium, Ad Gentes, Dei Verbum e o próprio documento de João XXIIII Humanae Salutis, convocando o Concílio estejam obsoletos! Não mesmo! É mais fácil aceitar a tese de que eles não foram estudados, digeridos e colocadas em prática nos anos subsequentes.
O papa João XXIII tinha detectado o principal problema e o Concílio Vaticano II abriu o caminho e proporcionou os instrumentos, para que jamais a Igreja ficasse alheia à história da humanidade ou se posicionasse, interna e externamente de forma incompatível ao mandato do seu Fundador. Nos primeiros quinze anos após o Concílio, com as Conferências Latino Americanas de Medellín e Puebla e tantas outras iniciativas também no velho mundo, houve de fato interesse na concretização do Concílio e a igreja passou por uma crise purificadora que lhe abriu horizontes novos de resgate de sua verdadeira identidade.
Contudo, a reação não se fez esperar e o medo de que a Igreja como Instituição se mostrasse fraca, fez com que surgissem nítidos retrocessos! Por infelicidade, essa mudança de rumo coincidiu com o rompimento das suas vísceras, em torno de abusos e outros escândalos que simplesmente nos colocaram fora do trem da saga humana no século XXI! Por isso, que vários autores mencionam que a igreja que está aí, não tem como sobreviver; e se essa expressão nos parece muito forte, a intenção do Papa Francisco como processo de sinodalidade, pode simplesmente designar o seu desejo de reinventá-la para torna-la naquilo que ela deve ser: uma companheira do mundo, apresentando-lhe Jesus Cristo o Caminho a Verdade e a Vida, mas numa autêntica pedagogia do episódio dos discípulos de Emaús (Lc24,13). Insisto que o Concílio Vaticano II já nos tinha apresentado de forma clara, esta nova identidade eclesial! Se a palavra Sínodo permanente, é um conceito do Concílio, a palavra sinodalidade pode nos mostrar a volta a ele mesmo! Não temos nenhuma noção onde esse processo nos levará porque o Espírito sopra onde quer, mas temos a certeza da fé de que Jesus nunca abandonou a sua Igreja e mesmo despindo-a e deixando-a nua na praça, pode torná-la mais credível e palatável aos homens e mulheres a quem historicamente ela se dirige! Isto nos conduz a uma outra constatação irreversível: a Igreja será minoritária, fermento na massa como nos garante Evangelho. O ambiente de cristandade ficará inexoravelmente para trás; no Uruguai, 50% da população não tem nenhuma religião e números apontam que em dez anos, o Brasil estará em situação similar. Na Europa, o quadro é ainda mais desconfortável para a Religião. A revisão de posturas envolvendo poder, riqueza, eficiência estrutural e peso institucional torna-se fundamental e imprescindível! A isso eu chamo, nascer de novo! Novos pactos das catacumbas, novos modelos de formação, e abordagem sem medo, das questões que o mundo nos impõe: da bioética, ao maior envolvendo e participação da mulher, até à ordenação de casados, passando pela comunhão de recasados ou a bênção de casais homoafetivos etc.
As Nunciaturas Apostólicas, desaguam neste século, vazias do sentido histórico que as criou! Pode ser que sobrevivam mais alguns anos, mas terão os dias contados! Não somente pela escassez de recursos financeiros que logo começaremos a sentir, mas principalmente porque as Conferências Episcopais na ótica do Vaticano II, poderão cumprir essa missão, de forma plena. A Santa Sé não pode ser um país como outro qualquer, que exija esse tipo de representatividade! O peso institucional que a embalou desde o século IV com claras influências do Império Romano decadente mostra-se enfadonho e às vezes, ineficaz, à concretização de sua missão única: evangelizar! O processo de sinodalidade é uma aventura no sentido legítimo e pleno: imprevisibilidade, surpresa, empreendimento ousado! A aventura da Igreja Católica com o Espírito! Não tem como dar errado! Foi esse ânimo que fez com João XXIII tenha mudado o seu discurso primeiro, quando disse na tomada de posse da Basílica de Latrão em 23 de novembro de 1958: “Não temos o direito de ver um longo caminho pela frente”, por um outro, em 25 de dezembro de 1961 quando impressionou o mundo católico ao publicar a Humanae Salutis convocando o Concílio Vaticano II! Ali lemos, como uma espécie de justificativa dessa convocatória: A Igreja assiste, hoje, à grave crise da sociedade. Enquanto para a humanidade surge uma era nova, obrigações de uma gravidade e amplitude imensas pesam sobre a Igreja, como nas épocas mais trágicas da sua história (…).
Francisco, o jesuíta, sabe onde quer chegar, mesmo que não perspire o porto (ainda)! Assim, sem a pretensão de documentos conclusivos, caminhamos no nevoeiro, guiados pelo próprio Espírito que está se manifestando em inúmeras vozes de dentro e de fora da própria Igreja! É um retorno ao Pentecostes dos anos 60!
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos – Arquidiocese de Londrina (antigo aluno da Ordem do Carmo)