“In illo tempore” a quadracarnavalesca no Seminário de Coimbra incluía a “Adoração das 40 horas”. Assim, ao longo de 40 horas consecutivas, o Santíssimo, exposto na Igreja do Seminário, tinha uma “guarda de honra”. Os sucessivos turnos dos alunos sucediam-se dia e noite em ambiente de adoração e recolhimento.As noites porém eram longas e as madrugadas custavam a chegar. Há já algum tempo a ideia andava a fervilhar, mas ainda não tinha surgido a ocasião mais oportuna
Um reverendo, capelão de uma comunidade religiosa, que possivelmente vivia nos arredores do Seminário, deixava estacionado no jardins do dito o seu belo e estimado carrinho amarelo – era, nem mais nem menos, que um Ford Anglia, talvez posteriormente aproveitado pelo realizador dos filmes do Harry Potter. O reverendo aparecia pela manhã, bem cedinho; limpava cuidadosamente o pára-brisas e, envolto na sua negra capa, lá partia para o serviço religioso. Havia que andar ligeirinho que a regra do Convento não tinha espera.
Cumprida a missão matinal, o carrinho lá voltava ao seu poiso e ali repousava, bem sossegadinho, esperando, quedo e mudo, o regresso do seu dono na manhã seguinte. Assim passava a roda dos dias e dos anos nesta pasmaceira pascácia. Os outros via-os ele, logo pela manhã, correr velozes pelas ruas da cidade, mas, ao longo do dia, apenas lhe chegava o ruído distante dos motores, coado pelas altas e sólidas paredes dos jardins do Seminário. Aquele estado depressivo em que o carrinho tinha entrado ia-se acentuando de dia para dia. Havia já quem falasse em consulta psiquiátrica, mas não formigavam na época, como hoje, os tais doutores.
Mas – dizia – a ideia já andava a fervilhar há muito naquelas cabecinhas juvenis. Faltava a oportunidade.
Pareceu que a conjuntura carnavalesca reunia as condições ideais. Libertar o carrinho das grilhetas, daqueles muros e daquelas grades fechadas por um enorme e negro portão de ferro.
Pela calada da noite, cumprido o preceito da hora de adoração, deu-se início ao acto libertador. Tinha chegado a hora!
Um grupo de “conjurados” dirige-se resolutamente para os jardins em direcção ao carrinho amarelo. O raiar da manhã ainda vinha longe e, por isso, o entorpecido carrinho, acordado pelo ruído das sotainas negras que se movimentavam na escuridão da noite, assusta-se. “- Não temas! Chegou a tua hora!” – sussurrou um dos “conjurados”.
Eis que a silenciosa turba avança e rodeia o desventurado carrinho. Cuidadosamente pegam-lhe ao colo e, muito a custo, levam-no bem para o centro daquele lago sem água, onde se cruza a rua que vem do lado do portão para portaria do Seminário com a rua perpendicular que vem do lado da Gráfica.
Eis o carrinho ali, naquele pequeno cabeço, bem à vista de quem ia entrando. Ao raiar da manhã lá foram chegando as santas mulheres para a missa matinal e, um pouco depois, chega o amo que maquinalmente se dirige para o poiso habitual. Mas oh desilusão! O bichinho, como num sonho premonitório dos filmes do Harry Potter, tinha levantado voo. Nem quer acreditar. Esfrega os olhos, mas a triste realidade está ali, nua e crua, à sua frente. O Ford Anglia tinha desaparecido misteriosamente.
Olha em redor, mas o Sol da manhã ofusca-lhe a vista. Retrocede desalentado. Mas ó prodígio dos prodígios, de repente olha e vê, lá bem no alto, o carrinho que para lá galgara durante a noite.
Aproxima-se entre o ansioso e receoso, mas é ele, mesmo ele, o seu querido carrinho. Apalpa-o para se certificar. A sensação táctil não o engana. Contorna-o e, subitamente, depara-se com um letreiro: “Dá-se, é só levá-lo”.
Luis Martins, AAASDCoimbra
Muito bem!
O signatário foi um dos “conjurados” da aventura.
E, o autor da frase dá pelo nome de António da Silva Fróis, natural da Fontinha, freguesia de Vila Cã.